07:00 Fiz uma lista de quem avisar caso morresse de repente. Apenas sete pessoas (excluindo o advogado). Muito pouco para tanto viver. Em demasia para quem pouco a aproveitou.
09:00 Não consigo escrever mais nada. Nada mais me fascina. Nada mais me atrai.
10:00 Nada me seduz.
11:00 Destruo algumas cartas (da época que escrevia cartas). Nada de coloca-las na fogueira tal filme dramático. Apenas as fiz em mil pedaços.
12:00 Ouço a cachorrada latir em desespero. Hora do lixeiro passar correndo.
13:00 Parei de comer há dias. O meu estômago chora e ronca em intervalos regulares.
14:00 Esqueci de pagar as contas. O gás, a luz, a água, a internet serão cortadas. Tonto eu porque agora não terei como avisar ninguém.
15:00 O interfone toca. Aos trancos vou até a porta mas só vejo a rua vazia. A esperança é a última que morre.
16:00 Lembrei de um ex colega que desligava a secretária eletrônica porque não suportava descobrir que não haviam recados.
17:00 Ouço The Cranberries.
18:00 Escrever me faz bem. Pena que escreva tão mal.
19:00 Revejo a minha letra nas cartas que sobraram. Quase não dá para entender os garranchos mal desenhados. Há poesia na destruição. Letras grandes e inseguras. Substantivos envelhecidos.
21:00 O meu raciocínio falha e não consigo mais entender a lógica do mundo. Se estou a desabafar ou fazer solilóquios.
22:00 Sou do tempo que falar era mais importante do que escrever. Sou do tempo que adolescente se levava a sério. Que desejava mudar o mundo e não ganhar apenas likes nas redes sociais. Que desafiava os pais e derramava o vinho direto na boca, na calça, na calçada.
23:00 Pouco ou nada tenho a acrescentar. Sei que a minha ausência será sentida. Há sentimentos ainda no mundo? Os meus acordaram disfarçados, embebidos em álcool. Vejo uma criança chorando na janela.
00:00 Durmo sabendo que fiz o possível. Que se falhas ou erros cometi foi porque banquei o estúpido romântico (ou um romântico estúpido?). Digamos que fui mal compreendido, mal interpretado. Que aquilo que escrevi, falei ou senti - eram apenas um desabafo por anos e anos de silenciosa repressão.
Sabe o soldado que fica horas em posição de sentido, guardando algo que não compreende? Foi assim comigo. Vivi para não entender. Entendi para não viver.
O rio caudaloso que passa por baixo desta casa - já às escuras - não irá salvar os meus pensamentos obsessivos. A minha incredulidade perante os fatos. O meu desespero frente às carnificina e estupidez dos negacionistas. Só me resta a perplexidade perante a beleza feminina. Quanto desperdiço.
Sou um ser feito de restos de proteína. Feito para se decompor. Que chora por ser fraco e insistir no sofrimento.
A porta se abre e surge algo que não faz nenhum sentido. Uma loira platinada tal Marilyn Monroe chega perto e me oferece ajuda. Sabiamente, lhe peço para fechar o punho e me bater bem forte. Quero morrer em silêncio, inconsciente. Alheio ao passado, sem assumir o presente e muito menos enfrentar o futuro.
Sai, fecha a porta! Guarda o adeus para outra ocasião. Talvez quando não esteja mais entre os meus, os seus, os nossos.
Vai, vai logo pois serei pior se ficares!
E o mau cheiro não te fará bem.
Idealizado em 2022 perto de Lucca - Itália. E elaborado em abril de 2023. Com finalização um ano depois.