10 de diciembre de 2023

Traidor

«Por favor não me procura mais...»

Sábias palavras. Curtas e grossas. Que nem corte de canivete afiado em pedra-pomes.

Esperava mais de ela, mas a ingratidão é uma das características do ser humano mais subestimadas.

Tento entendê-la, usar da minha empatia. Pensar se ela agiria diferente se eu ainda servisse para algo.

Culpa?

Não. Sou levado por incertezas e atos não refletidos.

Impulso?

Veja bem, não sou de ferro.

E a beleza feminina é a única coisa que nos salva neste mundo tão cheio de guerras e atrocidades.

É tanta besteira que me sinto como um Bukowsky tupiniquim. Mas diferente do Deus beatnik - não aguento mais beber nem transar.

A vida me traz lembranças de uma certa noite em São Gabriel. Onde o frio era tão intenso que tentava dormir  de meias e com botas.

Não sou o mesmo. Nem sei mais escrever direito. Estou longe daquele garoto que tinha tanta raiva dentro de si. Que escrevia horas sem parar, apenas reclamando da vida, das mulheres e do cotidiano.

Se alguém viesse me perguntar o que houve para parar de escrever, diria apenas que a culpa é de anos e anos de antidepressivos, tratamentos ineficientes e choques no hemisfério esquerdo. 

Drogas e drogas sem parar.

Ou talvez seja tudo fruto de tanta bebedeira inconsequente. De garrafões de vinho barato, cachaças de má índole e vodcas que lembram mais desinfetantes hospitalares.

Acredito ter dito tudo isso no passado, quando ainda tinha vontade de viver e aproveitar da vida. De querer curtir o momento como se fosse o último. De viver intensamente que nem propaganda de refrigerante.

Tornei-me obsoleto, velho. 

Vi esse dias uma peça de Gerald Thomas. E fiquei pensando de como a arte pode ser usada para enganar os desavisados. 

Cadê a insurgência do passado, a virulência, a raiva e a contestação?

Tudo ficou pra trás. Tudo virou enfadonho, repetitivo e usa e abusa de uma verborragia que não passa de frases feitas e lugares comuns.

Mas voltando ao começo, como diria o professor que perdeu suas fichas e não sabe mais o que falar na frente de imberbes e idiotas em plena década de 80.

Ela disse para deixa-la em paz, caso contrário procuraria as autoridades. Pois bem, ou ela é muito ingênua ou foi contaminada até o mais recôndito neurônio com o discurso hipócrita do Me Too.

O que me incomoda no Me Too? A hipocrisia que condena o abuso sexual mas faz vista grossa à indústria do espetáculo que usa meninas hipersexualizadas para gerar mais e mais lucro.

Torpes! Torpe vem de torpor. Homem que vive alienado e é presa fácil de coachers, políticos de direita e meninas interesseiras. São do tipo que vestem a camisa da empresa, se orgulham do trabalho, mas que na primeira oportunidade - são dispensados que nem lixo.

Esquece. 

Esquece que estou a escrever palavras desconexas. Que estou a me desiludir mais uma vez com suas palavras. 

Sou tão carente que qualquer sorriso feminino e bonito me faz sonhar acordado.

Você já viu o sorriso de uma mulher bonita hoje?

Ando pelas ruas, parques, gramas, cascalho e terra vermelha. Não acho ninguém. Não vejo ninguém.

É de noite agora e vou ao Lanterna para ver se encontro alguém. Mas não. Nenhum amigo, colega, conhecido ou desafeto. E muito menos um sorriso bonito. Uma dentadura branca e perfeita. Uma sobrancelha escura e bem delineada. Tudo naturalmente finalizado com os olhos claros e cabelos loiros de quem tem um pé nas Europas.

Não há sotaque, língua ou idioma que supere a palavra "SAUDADE". 

Já o disse o William Hurt numa entrega de Óscar qualquer.

Vem aqui. Pula na minha cama. Fala o que tu tens a falar e sai de fininho.

Apaga a luz, desliga o gás, deixa a chave embaixo do tapete e some.

O ônibus passa tão rápido quem nem me vê no ponto. Perco o último transporte público que me faria sair daqui. De uma Barcelona que pouco conheço mas muito admiro. 

E não há mais ninguém a me trazer alento. Um sopro de vida. Enxugar as minhas lágrimas e me fazer brevemente feliz.

Você gosta de mim ou algo assim?

Seja sincera. Não adianta falar que estamos juntos há milhares de anos. 

Ficar junto não é amar - já dizia o poeta.

Morrígan, a Grande Rainha, pouco ou nada sabe das minhas desventuras. Do meu passado, das minhas aflições e angustias. Porque caso soubesse estaria a contemplar o meu fim sem esse irônico sorriso no rosto.

Quero morrer, morrer mil vezes e trocar o dito pelo não dito em suaves prestações mensais.




































Nota do Autor: Trata-se de um texto de ficção. Nada ou quase nada tem a ver com a mais pura e crua realidade.