Não era de fazer muito frio em Lima. Mesmo no inverno. Mas passar a estação toda numa sala de aula com janelas sem vidros ou com os vidros quebrados - não era um programa dos mais saudáveis.
Briga, briga, briga!!!
O grito espalha-se por toda a escola.pÉ hora da saída, do tumulto, da balbúrdia. Crianças misturadas com adolescentes. Meninas disputando a atenção dos marmanjos. Turmas e gangues diversas, rostos e cores, espinhas, cabelos curtos e longos. É o caos.
O grito anunciando uma briga, uma discussão, mesmo trinta anos depois, ainda me faz tremer.
Um grupelho de boçais, imberbes e pirralhos sai em disparada
atrás dos gritos. Mais na frente, dois grupos andam em separado. Os contendores
e seus respectivos comparsas e padrinhos encaminham-se para a arena
escolhida para o duelo.
Duelo? A palavra lembra épocas passadas onde se costumava
lavar a honra com sangue (e retratada de forma crua e instigante na obra de Joseph Conrad e no
primeiro filme de Ridley Scott).
Logo veremos uma disputa de forças pueril e insana. Como dois machos demarcando espaço, querendo provar quem é o mais forte, o líder e quem irá ficar com a melhor fêmea da manada.
O local escolhido é uma construção inacabada. E o dileto público esparrama-se por cima de paredes expostas, tijolos e concreto cinza. O “ring” é um cômodo de 4 x 4 sem teto e de janelas nuas, com lixo, fezes de cachorro, pedras e muita areia espalhada.
Cada um de seu lado. Tiram a blusa, a camisa, arregaçam as mangas, arrumam o ensebado cabelo e trocam os tênis por sapatos de couro grosso e ponteira metálica.
Começa a rixa, a luta, o embate. Primeiro um jab de esquerda, um chute de direita, uma cabeçada. O enrosco, o agarro, a mordida, vale tudo. São como dançarinos, tentando acertar o golpe perfeito, definitivo. Um soco violento entra certeiro. O sangue escorre. Um dos lados fica abalado. A patada com força derruba-o de vez. O rosto, o corpo estendido, dolorido recebe mais e mais golpes no chão. A chusma grita e fica exaltada tais gorilas no cio. Entram os mais velhos e param com a briga.
Nunca soube qual seria o momento exato, certo de parar uma luta.
Talvez um lampejo de bom senso mande parar com tudo antes que alguém morra ou
fique alquebrado para sempre.
A turma de expectadores e curiosos se dispersa aos poucos. O
perdedor levanta-se com ajuda dos amigos e limpa o sangue e a sujeira com a
camisa puída que já foi branca um dia. Todos vão para casa, em grupos, uns felizes,
satisfeitos por terem provado a sua superioridade e macheza. Outros remoem a
vergonha da derrota e planejam vingança, a revanche. O motivo da briga? Ninguém
sabe, ninguém lembra e agora não faz nenhuma diferença. E a vida continua.
E a vida continua? Só se for pra você. Eu ainda ouço as
vozes:
- Fulano disse que você é o “filhinho de mamãe”, um mimado,
um viado.
São vozes de todos os lados, querendo despertar a minha
raiva, a minha hombridade. Devo entrar numa briga daqui a pouco. Sou homem e os
homens brigam, se defendem, agridem e machucam.
As vozes começam a ficar mais fortes e agressivas e toca o sino. A aula acaba. Todos saem. Menos eu. Fico na sala pregado na carteira. Os meus “amigos”, colegas, companheiros me olham surpresos, incrédulos. E o que até agora pouco eram - na sua plenitude - palavras entusiasmadas de incentivo, tudo se transforma em segundos em xingos de desprezo. Sou vilipendiado, odiado, pois irei envergonhar a turma, a classe como um todo.
Medo de morrer nunca tive. Medo tenho é de sofrer. Porque sofrer dói e isso é de matar.
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 29/09/2010