29 de enero de 2023

Janelas Nuas (Vidros Rotos)


Não era de fazer muito frio em Lima. Mesmo no inverno. Mas passar a estação toda numa sala de aula com janelas sem vidros ou com os vidros quebrados - não era um programa
dos mais saudáveis. 
Aí que entra a minha Santa Mãe na história. Ela, toda preocupada com a minha saúde (asma), decidiu pagar do próprio bolso a compra de metros e metros de um plástico grosso, mas transparente. Grosso o suficiente para aguentar a ventania até chegarem os vidros prometidos pelo Ministério de Educação e translúcido por razões mais do que óbvias. Lógico que ela - no seu metro e cinquenta de altura trajada como uma freira num tecido todo púrpura -  tinha a melhor das intenções, mas ser tão mimado na frente dos colegas de classe, da escola toda, ninguém merece. 
E tudo tem seu preço.

Briga, briga, briga!!!

O grito espalha-se por toda a escola.pÉ hora da saída, do tumulto, da balbúrdia. Crianças misturadas com adolescentes. Meninas disputando a atenção dos marmanjos. Turmas e gangues diversas, rostos e cores, espinhas, cabelos curtos e longos. É o caos.

 

O grito anunciando uma briga, uma discussão, mesmo trinta anos depois, ainda me faz tremer.

 

Um grupelho de boçais, imberbes e pirralhos sai em disparada atrás dos gritos. Mais na frente, dois grupos andam em separado. Os contendores e seus respectivos comparsas e padrinhos encaminham-se para a arena escolhida para o duelo.

 

Duelo? A palavra lembra épocas passadas onde se costumava lavar a honra com sangue (e retratada de forma crua e instigante na obra de Joseph Conrad e no primeiro filme de Ridley Scott).

 

Logo veremos uma disputa de forças pueril e insana. Como dois machos demarcando espaço, querendo provar quem é o mais forte, o líder e quem irá ficar com a melhor fêmea da manada.

O local escolhido é uma construção inacabada. E o dileto público esparrama-se por cima de paredes expostas, tijolos e concreto cinza. O “ring” é um cômodo de 4 x 4 sem teto e de janelas nuas, com lixo, fezes de cachorro, pedras e muita areia espalhada.

Cada um de seu lado. Tiram a blusa, a camisa, arregaçam as mangas, arrumam o ensebado cabelo e trocam os tênis por sapatos de couro grosso e ponteira metálica.

Começa a rixa, a luta, o embate. Primeiro um jab de esquerda, um chute de direita, uma cabeçada. O enrosco, o agarro, a mordida, vale tudo. São como dançarinos, tentando acertar o golpe perfeito, definitivo. Um soco violento entra certeiro. O sangue escorre. Um dos lados fica abalado. A patada com força derruba-o de vez. O rosto, o corpo estendido, dolorido recebe mais e mais golpes no chão. A chusma grita e fica exaltada tais gorilas no cio. Entram os mais velhos e param com a briga.

 

Nunca soube qual seria o momento exato, certo de parar uma luta. Talvez um lampejo de bom senso mande parar com tudo antes que alguém morra ou fique alquebrado para sempre.

 

A turma de expectadores e curiosos se dispersa aos poucos. O perdedor levanta-se com ajuda dos amigos e limpa o sangue e a sujeira com a camisa puída que já foi branca um dia. Todos vão para casa, em grupos, uns felizes, satisfeitos por terem provado a sua superioridade e macheza. Outros remoem a vergonha da derrota e planejam vingança, a revanche. O motivo da briga? Ninguém sabe, ninguém lembra e agora não faz nenhuma diferença. E a vida continua.

 

E a vida continua? Só se for pra você. Eu ainda ouço as vozes:

- Fulano disse que você é o “filhinho de mamãe”, um mimado, um viado.

São vozes de todos os lados, querendo despertar a minha raiva, a minha hombridade. Devo entrar numa briga daqui a pouco. Sou homem e os homens brigam, se defendem, agridem e machucam.

 Os minutos passam como se fossem segundos. Começo a suar. As mãos finas tremem e as pernas magras amolecem. Parece que vou cair e desmaiar. Agora treme o corpo todo. Maldita sensação de medo, paúra. Não quero brigar. Não quero apanhar. Não fui feito pra isso.

As vozes começam a ficar mais fortes e agressivas e toca o sino. A aula acaba. Todos saem. Menos eu. Fico na sala pregado na carteira. Os meus “amigos”, colegas, companheiros me olham surpresos, incrédulos. E o que até agora pouco eram - na sua plenitude - palavras entusiasmadas de incentivo, tudo se transforma em segundos em xingos de desprezo. Sou vilipendiado, odiado, pois irei envergonhar a turma, a classe como um todo.

 Nunca irão esquecer do meu fracasso, da minha covardia e talvez o mais revoltado do grupo decida brigar por mim, tomar o meu lugar e defender a minha, a nossa honra.

 Continuo tremendo. Trinta anos depois ainda tremo. E toda vez que sinto o frio que escapa pela fresta de uma janela quebrada ou semiaberta, lembro da minha mãe - da sua tez cobreada, olhos miúdos e nariz pequeno - da minha vergonha à la Bento Amaral e da minha calça cor de chumbo empapada.

Medo de morrer nunca tive. Medo tenho é de sofrer. Porque sofrer dói e isso é de matar.


PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 29/09/2010