Foi de madrugada. Numa quarta-feira de cinzas. Entre bêbados e equilibristas. Entre milhares de corpos seminus e esgotados, que ele a viu. À beira do caminho. Numa sarjeta qualquer. Vestida de princesa ou algo parecido. Ligeiramente chorando, fungando, soluçando. Foi e sentou-se bem próximo. Não quis de fato incomodar. Morria de medo de mulheres bonitas. Mas era Carnaval ou o que restou da festa. E tinha tomado uma boa dose de álcool, misturado ao lança-perfume.
- Oi, tá tudo bem contigo?
A princesa chorosa, com a fantasia toda amarrotada e suja, levantou de leve o rosto de vinte e poucos anos e com a maquiagem toda borrada, olhou pra ele e nada disse.
Ele insistiu, afinal após quatro dias de folia, era provavelmente a sua última chance.
- Posso te ajudar?
Desta vez deu certo. Ela respondeu com um longo suspiro e disse que estava bem sim. E segundos depois colocou suavemente sua cabeça no ombro dele.
O Deus Baco fez o resto.
Veio um longo intervalo. Com tomadas panorâmicas da cidade à noite. Com luzes de todas as cores piscando. Uma passagem de tempo digna de uma boa e velha novela das oito.
Havia meses que não a via. Mesmo em tempos de Google e Orkut, nada de achá-la.
Conseguiu um emprego num grande Jornal. Tinha um texto razoável, mas por ser tão sonhador vivia de editoria em editoria na redação. Um dia em cidades, no outro em esportes.
E lá se foi o novo repórter cobrir o jogo do Corinthians. Um jogo de segunda divisão, mas com a torcida gritando como se estivesse em final de copa do mundo.
E entre tantos gritos desesperados, aguardando pelo menos um mísero gol, ela apareceu. No meio da galera, na arquibancada, na geral. Ao lado de possuídos torcedores. Ela sentada, quietinha. Difícil saber se o tédio era provocado pelo jogo ruim ou porque estava onze quilos mais gorda.
O jornalista sonhador esperou o intervalo do primeiro tempo para correr até ela. Fez uso do crachá de imprensa para passar pelos seguranças. E conseguiu chegar perto. Mas havia uma última barreira. Uma barreira que mais parecia um puta armário. O cara vestido de branco e preto, todo suado e mal-encarado conversava com a sua aparente namorada enquanto acariciava a barriga de grávida.
Inventou que queria entrevistar uma torcedora. Alguém que sofria com seu time. Uma mulher no meio entre tantos homens. O corintiano desconfiou no começo, mas acabou cedendo.
- Baixinha, vou no banheiro e pegar um chope. Você tá afim?
Ela negou com a cabeça.
Apresentou-se, mas ela continuou indiferente. Poderia talvez estar enganado, mas era ela sim. Ensaiou um comentário sobre o último Carnaval, lugar X, sarjeta Y. Uma garota chorando. Uma madrugada conturbada. O beijo demorado.
Ela arregalou os olhos. Talvez não o tivesse reconhecido pela barba mal-cuidada. Deu um sorriso e o rosto iluminou-se.
Combinaram de se encontrar no dia seguinte numa das saídas do metrô Paraíso. Ele tentou despedir-se com um beijo, mas ela recusou o rosto sabiamente, pois estavam no meio de torcedores fanáticos, o tempo todo vigilantes.
O jogo no fim acabou empatado. Nada de incomum a relatar. Apenas uma jogada de perigo em 90 minutos. Um escanteio, uma cabeçada, um goleiro que espalma, uma torcida que levanta e lamenta.
Eram dez horas de uma manhã abafada e chuvosa. A noite anterior havia caído um temporal que destelhou casas e derrubou árvores. Centenas de desabrigados. Mas nada disso fazia qualquer diferença para o jovem repórter. De frente à catedral Ortodoxa, aguardava por uma mulher grávida. Ou melhor, uma menina de cabelo escuro e estatura pequena. Nariz fino, pele bronzeada e sobrancelhas grossas.
Ela saiu no meio de tantos outros. Apareceu subindo as escadas, de blusa enorme e calça folgada. Parecia mais inchada que no dia anterior. Mesmo assim, estava linda e um cheiro de flores da noite veio junto.
Conversaram muito. Algo que não fizeram no Carnaval passado. Papo vai, papo vem e ele faz uma pergunta arriscada e de certa forma temerária.
- Quantos meses?
Ela reluta em dar a resposta. Perdeu a conta – ela diz com um sorriso matreiro.
Ele insiste. Quer saber. Apenas curiosidade de repórter, ele alega. Mas se fosse um pouco mais experiente, mais antenado e familiarizado com o tema gravidez, teria sabido na hora que pouco tempo restava para a criança nascer. E talvez com um olhar mais crítico, até o sexo teria descoberto.
Desiste de saber quantos meses e pergunta, como quem não quer nada, o nome do namorado. Ela rebela apenas o apelido: Mano Brown. Pois de tão parecido com o vocalista da banda “Charlie Brown Jr.”, todos os chamavam assim.
Mano Brown, que nome idiota, ele pensou. Deve ser um corintiano maloqueiro, do tipo que anda com um skate nos pés e nada na cabeça..
- Mas como uma menina tão delicada e meiga foi namorar um cara desses?
Ela ri. Sei lá mil coisas, ela responde.
Combinaram um novo encontro no dia seguinte. No mesmo lugar, no mesmo horário.
Decide tomar mais uma coca enquanto a vê descer as escadas. Quis acompanhá-la mas ela falou que não era preciso.
Mais uma noite sem dormir. Aguardando a hora chegar. Nem passou pelo jornal de manhã. Ligou e disse que estava doente. Uma infecção, uma virose qualquer.
E assim foram os dias e grande parte das tardes. As noites eram reservadas para o corintiano sofredor.
A uma semana da data que daria entrada na maternidade, ele decide coloca-la contra a parede.
- Vem comigo. Desmarcamos o parto. Ligamos pro médico agora.
Ela só dá risada. Mas pouco a pouco começa e encher-se de lágrimas.
- Fugir pra onde? E os meus pais, a minha família. Você é louco!
E entre soluços, ela decide nem mudar a data nem a maternidade. Não seria justo com Mano Brown, justificou-se.
- E onde eu fico nessa história toda?
- Você poderia me visitar. Falar que é o meu amigo. Levar-me flores e dar-me um beijo de parabéns. Afinal iríamos pra onde? Com um salário miserável e um recém-nascido.
Ele reluta, reclama, fala que a ama, que o menino (sim, era um menino) poderia ser filho dele e não era justo passar por tudo isso. Levanta da mesa e sai, deixando-a só.
Nas poucas horas que restavam da tarde, elabora um plano perfeito. Irá buscá-la no início da noite, antes do Mano chegar. Inventará que é um colega do colegial. Que precisam terminar uma apresentação pro dia seguinte. Subirá no apartamento e depois de algum tempo forçará uma saída até a lanchonete da esquina.
- Vou fazer um escândalo!
Sobe no apartamento e é recebido por um senhor de olhar duro e muito sério (soube depois que era o pai, um coronel veterinário aposentado do exercito). Depois de alguns intermináveis minutos, sendo interrogado, ela apareceu pra salvar a pátria. Ambos descem sem trocar qualquer palavra no elevador. Vão em direção da lanchonete. Mas antes ele para e abre a porta do seu Corsinha. Ele pede pra ela entrar. Começam a discutir. Ele chora, ela o consola. Aparece do nada a irmã mais nova que inicia uma saraivada de perguntas. E de tanto insistir descobre que ele é o amigo jornalista. Fica exultante e faz diversos questionamentos: Como vê a situação política? Porque a imprensa é tão parcial? Custava dar uma força para o novo governo? Meio que contrariado responde que não é bem assim. Que os donos de jornal têm diversos interesses. Que as TVs são movidas pela audiência etc. e tal. A irmã olha desconfiada. Não aceita. Não concorda
- As novelas da Globo precisam ser mais realistas, mais pé no chão. Não é só de amor
que vive a humanidade, ela retruca.
Tá bom, tá bom, ele não agüenta mais. Ele ameaça entrar no carro, mas um grito de longe o impede. Mano Brown chega numa 4 x 4 toda incrementada, novinha em folha.
E tal qual borboleta enlouquecida, a paixão de nove meses entra na pick up e começa a dar gritinhos de êxtase.
-Carro novo, carro novo! Que lindo, onde você comprou?
E os dois saem para dar um rolê.
O triste repórter fica com a irmã mais nova que insiste em cobrar-lhe um posicionamento mais firme.
- Serei jornalista, ela completa.
Rápido intervalo.
De frente ao telão da maternidade, ele observa o desenrolar do parto. Sangue aqui, mecônio acolá. Mas tudo felizmente termina bem. Mano não veio, teve que viajar de última hora para acompanhar o seu time de coração num jogo comemorativo.
Os avós estão felizes. E ele chateado por que as rosas caras tiveram que ficar do lado de fora do quarto. A tia questionadora também está lá e diz que a criança tem cara de joelho. Ele não concorda. Dá os parabéns e um beijo na testa da nova mãe. Olha pro bebê que está mamando e que apesar de ser todo cabeludo, é basicamente lindo. Olha de volta pra ela. Ela sorri e agradece as flores e a visita. E de leve dá uma bela e discreta piscada de olhos.
Sai do quarto e senta novamente em frente ao telão. É um outro parto e é uma pena que não tenha intervalos como na TV, pois está com a bexiga cheia e gostaria de ir ao banheiro.
Bertioga, janeiro de 2008.