27 de julio de 2007

O PINTO AGASALHADO

Acordo com um leve barulho na minha janela. Parece um bater de asas. Tenho medo. Odeio aves de qualquer tipo e fico apavorada desde criança. Sofro, choro, vomito por causa desses bichos.
O som que ele faz com as asas e o irritante arrulhar me mantém acordada. Cubro a cabeça com o lençol e o travesseiro, mas não consigo parar de pensar no danado. Ele me espreita, me fita, me consome.
A noite não termina nunca. Preciso sair da cama e ir ao banheiro. Quero mijar, vomitar, mas o medo me paralisa.
Amanhece. A pomba negra olha pro céu e levanta vôo. Some da minha frente e respiro aliviada. Posso retomar a minha vida apesar das olheiras, da bexiga ardendo e das náuseas.

Semanas se passaram sem sinal da pomba negra (ou seria uma pomba-gira?). Rio de mim mesma. Onde já se viu ter tanto medo de um pobre passaro. O quê que aconteceu e gerou tanto pânico? Não sei, não lembro. Seria necessário fazer inúmeras sessões de terapia de choque para descobrir os motivos. Só sei que fico terrivelmente mal só de pensar. Lembro da vez que entrou uma galinha dentro da minha sala de aula lá no interior. Foi desesperador, tive que subir na carteira para não encostar nela. A galinha pulava, cacarejava e todo mundo atrás da infeliz. E eu de cima olhando, em desespero. Todos riram de mim às gargalhadas.

Na volta do serviço, entro na mercearia do bairro para fazer as compras que preciso. Olho a pequena lista e vou de seção em seção até achar o necessário. Deixo por último, os divinos ovos. Escolho com muito cuidado uma caixa onde está escrito que são ovos da granja. São mais caros, com certeza, mas minha mãe me ensinou que são os melhores. Abro-a e conto os ovos um por um. São doze, todos inteiros e sem manchas. Vou até o caixa e pago a conta em dinheiro (não gosto de cheques nem cartões). A moça – feia e desgrenhada – me dá o troco, mas antes de guardá-lo na carteira, separo as notas uma a uma e coloco-as em ordem. Do menor ao maior. Primeiro as de um real, depois de dois, cinco, vinte e parei, não tenho nenhuma nota de cinqüenta ou cem. Guardo as moedas num pequeno porta-moedeiro e fecho a bolsa. Depois desse ritual todo, pego as sacolas com cuidado. Não quero quebrar os ovos antes de chegar a casa. Imagino loucamente um omelete com presunto e fico com água na boca.

Após o jantar, tiro a mesa cuidadosamente para não sujar o chão. Lavo a louça e coloco o que sobrou dentro da geladeira. Por alguma razão desconhecida, não guardo os ovos que sobraram. Deixo a caixa semicheia ao lado da escrivaninha . Ligo um abajur e começo a arrumar a papelada. Contas e mais contas (desde que o meu marido me deixou não faço mais nada do que pagar contas). Depois pego o material da escola e começo a revisar as provas dos meus alunos. Cada vez piores, cada vez mais insolentes. Dou aula de Geografia para adolescentes que nem sabem direito onde fica a casa deles. Rapazes medonhos, cheio de espinhas, imberbes e tarados. Meninas tolas, peruonas que se vestem provocativamente para chamar a atenção dos machos. Detesto todos eles. Corrijo as provas. São de doer. Ou eles são muito burros ou eu não estou sabendo mais dar aula. Bom fazer o quê? Acabo dando um cochilo.

Um leve piar me acorda: piu-piu, piu-piu, piu-piu, piu-piu.......... Devo estar sonhando. Devo estar dormindo ainda. Tento me concentrar no barulho. É um piu-piu sim. Um pipiar que se aproxima cada vez mais rápido. É um som que aumenta cada vez mais e torna-se agudo, machucando os meus ouvidos. A curiosidade vence o medo e decido olhar para o chão. Vejo, totalmente incrédula, um pequeno pinto todo amarelo. Com as pequenas penas molhadas e tiritando de frio. Pia e pia cada vez mais alto. Levanto o olhar e a primeira coisa que vejo é a caixa de ovos aberta e dentro dela um ovo quebrado. È casca para todo lado. Não é preciso ser muito inteligente pra deduzir que o pinto saiu do ovo. Agora saber como e porque ele saiu de uma caixa que só deveria ter ovos para comer, não faço a mínima idéia. Vou reclamar na mercearia, é lógico. Ou melhor, no serviço de atendimento ao consumidor do produtor dos ovos. Onde já viu vender ovos com pinto dentro. Poderia ter matado o bichinho, jogando-o dentro da frigideira, coitado!!!!

Pego irritada o telefone, mas subitamente, lembro do pavor que tenho de aves e espécies congêneres. A minha primeira intenção é subir correndo na cadeira, mas me contenho. Tenho medo de assustá-lo. Afinal ele é muito pequenininho e não para de piar. Deve estar com fome e com frio. Reluto em pega-lo no colo para limpa-lo. Tenho asco, me dá repulsa, preciso vomitar. Paro e respiro fundo. O meu instinto materno começa a falar mais alto e devagar, muito devagar, estendo os meus braços na tentativa de acolhê-lo. O pintinho não para de piar. Ele se retrai todo, ele recua com medo das minhas enormes mãos. Consigo segurá-lo com cuidado. Pego um guardanapo de papel e limpo suas penas. Tento aquece-lo, fazendo massagens no dorso dele. Que nojo, meu Deus!

Levanto da cadeira. Vou até a geladeira. Decido dar-lhe um pouco de água e biscoito maisena. Com uma mão seguro o pinto e com a outra pego os biscoitos e os mergulho dentro de um copo dágua. Aos poucos ficam moles e diluídos. Pego uma pequena tampa de requeijão e coloco dentro a mistura mole. Deixo o pinto ao lado para se alimentar. Olha pra mim e não entende. Seus olhos enormes me fitam, indagando, esperando instruções. Começa a piar de novo. Não agüento. Pego de leve a sua pequena cabecinha e enfio seu bico rosado dentro da comida. Ele resiste mas acaba comendo. Pelo menos parou de piar. Aproveito e vou tomar um banho e lavar bem as minhas mãos. O cheiro do pinto me enjoa.


Está na hora de dormir. Monto uma pequena caminha com uma caixa de sapatos e algumas meias velhas. Ele não fica muito entusiasmado. Parece que não gostou.
Agarro-o de leve e deixo-o dentro da caixinha. Ele fica dentro, mas não dorme. Lavo as mãos novamente e vou para a minha cama. Tive um dia corrido e atípico. Preciso dormir e descansar. São muitas emoções.


Não sei quanto tempo se passou. O piar do pintinho me faz despertar. Saio da cama e ligo a luz. Ele está fora da caixa e pia sem parar. Parece tremer de frio. Fico com dó. Não sei o que fazer. Ele não para de piar e vai acabar acordando os vizinhos. Sento na beirada da cama e de forma relutante, decido colocá-lo no meu colo. Não consigo pensar em mais nada. Não sei como agir. Nunca tive um pinto na minha vida!!! E até poucas horas atrás eu morria de medo de qualquer tipo de bicho com penas! Por milagre, o pintinho começa a aninhar-se no meu colo e para de piar. Deve ser o calor do meu corpo. Fazer o quê? Não tem remédio.

Aos poucos vou esticando o corpo e me acomodando por inteira. Com muito cuidado para não derrubá-lo no chão. Vou dormir com ele. Vou agasalhá-lo para que não morra de frio e assim pare de piar uma vez por todas. Tenho de medo de machucá-lo, de sufocá-lo com o meu corpo. O pintinho não se mexe. Parece que pegou no sono. Procuro relaxar e dormir. Terei mais um longo e tenebroso dia e os pentelhos da escola não me dão sossego. Mas antes de fechar de vez os olhos vejo se o pinto está bem agasalhado e dormindo.


Logo cedo um bater na minha porta: toc-toc, toc-toc.
- Quem é, pergunto?
- É o vizinho aqui do lado.
Que estranho. Normalmente, ninguém fala comigo, ninguém me procura. Nunca recibo visitas e agora o vizinho – que por acaso é o síndico - está à minha porta.
Com muito cuidado me arrasto fora da cama. Não quero acordar o pintinho, pois ele dorme faceiro e tranqüilo.
Abro a porta e o síndico se apresenta. Pergunta se estou com um pinto em casa. Digo que sim, não tenho como negar. Ele fala que ouviu o pinto piar a noite toda (que mentira!). Começa a reclamar rispidamente. Que prédio dele não admite pintos. Que o lugar não é um galinheiro nem muito menos um pardieiro. E que não vai deixar que o pinto durma mais uma noite comigo. Onde já se viu! Um absurdo, etc e tal. Sou obrigada a concordar com ele. Não tenho filhos. Não sei cuidar de crianças. Nunca tive bichos de estimação. Que dirá de ficar com um pinto na minha casa. Pode virar uma galinha ou pior, um enorme galo!


Fecho a porta. Não sei como lidar com situação tão esdrúxula. Vontade era de devolver o pinto para a mercearia. Eles que se virem. O quê fazer com um pinto no meio da cidade, da metrópole??!! Talvez o zoológico, talvez.

Desço pelo elevador com o pinto escondido no meio da blusa de lã. Vejo a rua e fico mais atordoada ainda. E se soltar o pequeno pinto, o pintinho no meio dos carros e ligar depois para os bombeiros?

Eureka!!! Lembrei que tem hoje uma feira aqui perto. E no meio de frutas, hortaliças e legumes, há um casal de japoneses que vende frango e ovos. Quem sabe, eles dêem um jeito.


Chego sorrateiramente por trás da barraca. Muita gente fazendo compras, muita balbúrdia e confusão. A idéia é deixar o pintinho ao lado das caixas de ovos. Só que esqueci que o safado gosta de piar. Foi só tirá-lo do aconchego da blusa para começar a piar: piu, piu, piu, piu. Solto ele e saio correndo. Parece que ninguém reparou. Ninguém me viu. De repente, atrás de mim alguém grita:
- Vai banana aí Madame?!
Paro. Dou um tempo. Decido voltar. Paro de novo. Dou meia-volta. Continuo a andar a passos largos.
De suspiro em suspiro, vou direto para a escola, enfrentar o meu martírio. É dia de prova.


Volto à noite para casa e ela está vazia. Sem barulho, mas com cocô espalhado pelo chão. Tenho saudades do pintinho. O pinto se foi. Fico triste. Estava gostando dele. Não é sempre que você dorme com um pinto na cama e com certeza nunca irei esquecê-lo. Será que vai mandar notícias? Vai me escrever?
Ou pior, vai morrer dentro da panela como um simples ensopado, asado, frito ou empanado??!! Preciso parar de pensar em tudo isso. Preciso esquecer o pinto. Preciso me acostumar a não ter mais pintos na minha vida.
Vou preparar um chá de camomila e tomar meio lexotan. Devo me acalmar e dormir. Descansar. Pego um livro que parei pela metade. É de um escritor peruano pouco conhecido: A mulher no seu desespero. Começo a ler. Quase nada lembro.

- A infelicidade feminina é fruto do seu apego às... nada, nada... nada...

Desperto com um bru, bru, bru, bru intenso e persistente. Sento com dificuldade e vejo a velha pomba negra na minha janela. Ela me olha com pena. Começa a bicar o vidro. Parece que quer entrar.... mas tenho medo.


Baseado livremente numa história contada pela minha amiga Nádia Lopes.

Ilustração de Simone Matias.

Floripa maio 2005/São Paulo julho 2007