8 de agosto de 2023

A PANDORGA


    Antes de tudo, cabe aqui uma pequena introdução ou talvez até uma justificativa: a família do meu pai sempre foi famosa pela sua avareza. Nada de viver na miséria e esconder o dinheiro embaixo do colchão. Não, nada disso. Era, mais bem, uma família que fazia de tudo para evitar o desperdiço e economizar nos pequenos detalhes, mantendo a mão fechada sempre que possível.
 
   Bom, agora vem a historinha. Como toda criança curiosa e exigente, queria porque queria que o meu Pai comprasse uma pandorga. O meu pai – fiel aos princípios familiares – falou que não. Nada de gastar desnecessariamente.  
 
   - Podemos montar uma, disse ele. Sairá muito mais barato!  
 
   Pois bem, lá fomos nós comprar o material necessário. Papel de seda, varinhas de madeira ou cana, cola, tesoura, cordel, etc, etc.
 
   Montar uma pandorga não é – teoricamente – uma atividade do outro mundo. É só cortar o papel, colar as varinhas, dobrá-las, juntá-las, quebrá-las e por fim colá-las de novo. Emendar a linha, a cauda colorida, o barbante e o resto do resto. Após algumas horas, a pandorga de papel estava pronta. Bonita, com certeza, mas faltava o principal, o teste, é claro. De que adiantava ter uma pandorga bonitinha se não voasse?!
    
   E lá fomos nós. No meio de um descampado, num dia nublado, frio e com uma pequena mas incômoda garoa.
    
   Testamos o vento e fizemos os últimos preparativos. A pandorga parecia um lutador de boxe rodeada de preparadores, assistentes e do técnico, dando-lhe as últimas orientações.
 
   Corri com ela uns 15 a 20 metros e ergui os meus pequenos e magricelos braços. A pandorga estava pronta para decolar. O meu pai puxou o cordel mas a pandorga não levantou voo. Pesada demais, caiu no chão.
 
   Nova tentativa, corri e ergui os meus braços a mais não poder. Nada. Ela teimou, teimou e caiu, estatelando-se no chão de terra.
 
    Mudamos as posições, o meu pai decidiu erguer a pandorga e eu me afastei para puxar o barbante com força e determinação. Mas a bendita pandorga subiu, deu algumas piruetas, zunindo ao vento, e pum!!! Na lona de novo. O meu lutador tinha sido nocauteado pela terceira vez.
    
    Assim foi a tarde toda, novas tentativas, novas frustrações.
 
    Fizemos alguns remendos na pandorga machucada, corrigimos a cauda, refizemos e tampamos alguns buracos. Mas nada. A pandorga não durava mais do que alguns segundos ao vento.
 
    O meu pai entre chateado e furioso, tentava me animar e incentivar em novas tentativas. Mas a cada queda, o tom de voz ficava cada vez mais nervoso e inseguro.
 
    Eu, desiludido, não sabia como reagir. Reclamar pelo fato do meu pai não ter comprado uma pandorga pronta ou falar que tudo bem, o importante era ter ficado algumas horas junto com ele, montando a mal-agradecida?
 
   De longe, apareceu um moço que com certeza tinha visto nossas frustradas tentativas de erguer o meu brinquedo. Ele fez alguns comentários que não entendi mas percebi que compreendia mais do assunto do que o meu pai. Começou a mexer na pandorga, cortou alguns excessos do corpo e da cauda, refez a aerodinâmica – se assim podemos disser – e sugeriu uma nova tentativa.
    
   O meu lutador de boxe, depois de vários KO, estava pronto para o último assalto. Era bater ou correr. Era derrubar o adversário ou perder a luta. 

   Lá fomos nós de novo. Levantei os braços, a pandorga estava pronta. O moço desconhecido puxou com firmeza o cordel e a pandorga levantou voo. Desta vez, durou uns 10 segundos antes de cair. Beijou a lona. Estatelou-se e quebrou-se em alguns pedaços. O juiz parou a luta, mandou o adversário pro canto dele e começou a contagem. 1, 2, 3...4, 5, 6.. 9, 10! O meu lutador não se levantou. A pandorga já era. 
 
   O moço apertou a mão do meu pai e meio que se justificando, explicou que a pandorga não tinha jeito. Era pesada demais ou algo assim (como se já não soubéssemos). O meu pai assentiu com a cabeça e agradeceu.
 
   Virou-se pra mim e pediu desculpas com o olhar. Eu não sabia o que dizer. O meu lutador continuava no chão. O meu pai – o meu herói, o meu ser indestrutível e perfeito, o meu modelo de conduta e sabedoria, tinha fracassado. E pela primeira vez, vi o meu pai como um perdedor, um ser humano de carne e osso que fez a escolha errada, tentando economizar em ninharias, dando-se mal. 
 
   Fui buscar a pandorga ou o que sobrou dela. Talvez pudesse construir uma nova com os restos. Uma pequena, leve e solta. Afinal, pra que gastar numa nova se poderíamos tê-la de volta? 
 








Publicado originalmente em Agosto de 2010.
Republicada em 10/08/2020.
E revisitada novamente.
Doença, dor e desespero. 
Uma singela homenagem no Dia dos Pais.