O Bode do Mal













Deveria de ter 10 ou 11 anos, talvez mais, 
talvez menos. Tímido, cheio de manias e neuroses. E num certo domingo, nublado e infeliz, a minha mãe me pediu para acompanhá-la à nova casa em construção na periferia da periferia.  
E enquanto não terminavam as obras, o imóvel servia - em parte - como um depósito de bichos e frutíferas diversas. Haviam patos, galinhas, porcos, tartarugas e até um macaco. E, por algum tempo, um pequeno bode também fez parte do bando. Preto e com manchas brancas no dorso. 

Logo que chegamos, a minha mãe falou que ia à feira. E depois que ela saiu, percebi que me sentia muito bem a sós com os meus brinquedos. E se a minha mãe confiava em me deixar assim era porque, com certeza, já era um pequeno adulto.

A nova casa era grande se comparada com o pequeno apartamento onde morávamos. E, como disse antes, estava dividida entre os aposentos comuns e o mini-zoológico. De um lado haviam as pessoas, do outro os animais. 
E eu ficava junto aos animais apenas quando acompanhado dos meus pais. Eles preparando e lhes dando comida, limpando a sujeira, arrumando a bagunça, etc, etc.

Mas naquele domingo, depois de tanto brincar, achei que poderia sair e ficar do outro lado, sem qualquer outra companhia adulta. Seguro de mim, abri a porta e saí pro quintal. Olhei os diversos bichos, fiz caretas, ri com as sujeiradas do porco e o acasalamento engraçado dos patos. Mas não imaginei que o pequeno bode começaria a me seguir por todos os lados. Do curral até o pomar, do pomar até o lamaçal. Onde fosse, o bode ia junto. Repentinamente, começou a me empurrar com a cabeça de incipientes chifres. Achei engraçado no início, mas depois comecei a ficar preocupado e com um certo medo.

O bode não parava de me empurrar ou de tentar me acertar com a cabeça. Parecia um touro indomável a enfrentar a sua derradeira luta. E o medo aumentando a poucos degraus de ficar aterrorizado. Tentei afastá-lo mais de uma vez sem sucesso e comecei a fugir de ele, tremendo dos pés à cabeça. Fui trambecando até a porta onde, depois de atravessá-la, ficaria no espaço dos humanos, são e salvo.

Mas, para piorar tudo, a porra de chave não conseguia abrir a porta. A chave emperrada e as mãos suadas acrescentaram mais drama à triste aventura. Não conseguia girá-la nem pra direita nem pra esquerda. E atrás de mim, o bode  enfiando a sua cabeça peluda entre as minhas calças de criança. Comecei a gritar e pedir socorro, a chorar em desespero. Pulei, chutei e xinguei o maldito animal, mas ele continuava a me cercar e me dar cabeçadas. Minutos se passaram, mas na minha mente infantil pareciam horas intermináveis. A minha mãe não chegava e eu cada vez mais apavorado.

Entre lágrimas e balbuciando, tive a ideia, não sei porquê, de pedir perdão para o insano bode. Pedir perdão por matar aranhas e formigas com fósforos acessos. Por atirar em pequenos pássaros e gatos rueros. Judiar dos peixes do aquário e brincar de enforcar o meu cachorro. Pedi perdão pelos meus pecados. 

Deu certo.  O bode parou de me perseguir, ficando estático me fitando. Rindo por dentro da minha patética odisseia. Respirei aliviado e ainda soluçando tentei abrir a porta mais uma vez. Girei a chave com jeito e menos força e consegui abrir a bendita fechadura. 

Entrei dentro da casa não sem antes empurrar o bode pra fora. Bati e tranquei a porta e sentei no chão. Estava todo sujo e mijado, mas ufa!!! tinha conseguido me livrar do pérfido monstro.

Minha mãe chegou após um tempo e vendo o meu estado deplorável me mandou tirar a roupa,  ralhando comigo enquanto esquentava a água do banho.

Tempos depois, comemorando o Dia das Mães, apareceu à mesa do almoço o bode que me fez pedir perdão, agora transmutado num suculento ensopado. Bom apetit!!, disseram todos. Mas eu não consegui comer. Saí correndo e fui chorar na minha cama. Ninguém entendeu nada, é claro. E só hoje tive coragem de contar.

Em tempo: Agora só mato baratas, moscas e pernilongos.


Originalmente publicado em 09/04/2010. Fiz algumas alterações de estilo e acrescentei novas lembranças.

Comentarios

Anónimo ha dicho que…
Ai que dó...
Já vivi algo semelhante...no sítio da família havia uma criação de carneiros...e eu adorava correr atrás dos carneirinhos...tão lindos...parei de comer...carne por muitos anos...depois que vi o carneiro na mesa do almoço...
um horror...
beijos
Leca

Emilio. Poeta diletante. Homem frustrado. Não leu os clássicos, mas adora Bukowski e Woody Allen.

Emilio. Poeta diletante. Homem frustrado. Não leu os clássicos, mas adora Bukowski e Woody Allen.
"El hombre es la víctima de un medio que se niega a comprender su alma."