4 de septiembre de 2023

A memória após a Covid, o Câncer e a Depressão

A única vantagem que vejo em ficar desempregado/afastado/de licença é ter suficientemente tempo - entre um e outro intervalo ou recuperação - de descobrir e fazer coisas que não faria se estivesse ocupado 12 horas por dia.

 

Foi assim em 2014 quando descobri a beleza e as suaves melodias de Russian Red.

Foi assim em 2016 quando revi a minha Mãe depois de 14 anos.

Foi assim em 2020 quando redescobri a proteção e o carinho da família.

 

 

Foi assim em 2022 quando descobri The Wire, Conversa no Catedral e Coti Sorokin.

Foi assim em 2023 quando descobri The Capture, Wallander, Maneskin, Sharp, Seriado Russos, Filmes do Mubi (In The Mood For Love!), Ted lasso, Strike, Slow Horses e o interessantíssimo Tehran.

E mesmo com a memória desfazendo-se em suaves prestações mensais a partir de 2020,  há lembranças que teimam em sumir e por mais desagradáveis que sejam, vira e mexe, voltam a nos confrontar.

Com o meu Pai tenho algumas lembranças boas e outras ruins. Da minha Mãe, só guardo as ruins.

Estranho, mas fazer o quê?

Não comando o meu corpo. Muito menos a minha mente.

A memória é finita. Recebe insights de esquerda e direita. Convulsiona e vive errática entre neurônios e sinapses. 

E sobra pouco, muito pouco.

Tudo isso porque lembrei de um amigo que, literalmente, invadiu a cidade onde estudei. Uma cidade, no interior do RS, onde o conservadorismo corria solto.

E mesmo na Universidade, que em tese teria uma mentalidade mais aberta e liberal, a presença do guri não era bem vista.

Talvez fosse o cabelo todo arrepiado com gumex, os olhos delineados, as roupas desleixadas e os trejeitos delicados.

Talvez.

Ele foi uma espécie de divisor de águas em termos de costumes, pois trouxe à baila o estilo de vida da metrópole, a forma iconoclasta de agir e de se vestir , o germe da alimentação natural, a contracultura, etc. E tudo num contexto de décadas atrás. 

Um guri que adorava sair à noite à caça de garotos ou homens feitos, dispostos a um sexo fugaz , selvagem e que na maioria das vezes, era proibido.

Isso tudo, antes da epidemia de AIDS. 

Quando estourou a doença pra valer,  já tinha perdido totalmente o contato. E a probabilidade de ele ter morrido por causa da doença é muito alta.

Mas daquilo tudo que vi e convivi com ele, sobraram apenas duas lembranças que perduram com força na minha memória.

A primeira, de ter tomado conhecimento do Morrissey e The Smiths. 

A outra, o fato de ter sido escroto, pois falei para não bancar o homem comigo.

Cruel. 

Fui cruel com um cara que era mais forte e corajoso do que muitos que já conheci. 

Fui cruel com alguém que não tinha o mínimo senso de perigo.

E tudo porque queria ser feliz. 

Por minutos, horas, talvez dias.

Publicado originalmente me 29/07/22


18 de agosto de 2023

8 de agosto de 2023

A PANDORGA


    Antes de tudo, cabe aqui uma pequena introdução ou talvez até uma justificativa: a família do meu pai sempre foi famosa pela sua avareza. Nada de viver na miséria e esconder o dinheiro embaixo do colchão. Não, nada disso. Era, mais bem, uma família que fazia de tudo para evitar o desperdiço e economizar nos pequenos detalhes, mantendo a mão fechada sempre que possível.
 
   Bom, agora vem a historinha. Como toda criança curiosa e exigente, queria porque queria que o meu Pai comprasse uma pandorga. O meu pai – fiel aos princípios familiares – falou que não. Nada de gastar desnecessariamente.  
 
   - Podemos montar uma, disse ele. Sairá muito mais barato!  
 
   Pois bem, lá fomos nós comprar o material necessário. Papel de seda, varinhas de madeira ou cana, cola, tesoura, cordel, etc, etc.
 
   Montar uma pandorga não é – teoricamente – uma atividade do outro mundo. É só cortar o papel, colar as varinhas, dobrá-las, juntá-las, quebrá-las e por fim colá-las de novo. Emendar a linha, a cauda colorida, o barbante e o resto do resto. Após algumas horas, a pandorga de papel estava pronta. Bonita, com certeza, mas faltava o principal, o teste, é claro. De que adiantava ter uma pandorga bonitinha se não voasse?!
    
   E lá fomos nós. No meio de um descampado, num dia nublado, frio e com uma pequena mas incômoda garoa.
    
   Testamos o vento e fizemos os últimos preparativos. A pandorga parecia um lutador de boxe rodeada de preparadores, assistentes e do técnico, dando-lhe as últimas orientações.
 
   Corri com ela uns 15 a 20 metros e ergui os meus pequenos e magricelos braços. A pandorga estava pronta para decolar. O meu pai puxou o cordel mas a pandorga não levantou voo. Pesada demais, caiu no chão.
 
   Nova tentativa, corri e ergui os meus braços a mais não poder. Nada. Ela teimou, teimou e caiu, estatelando-se no chão de terra.
 
    Mudamos as posições, o meu pai decidiu erguer a pandorga e eu me afastei para puxar o barbante com força e determinação. Mas a bendita pandorga subiu, deu algumas piruetas, zunindo ao vento, e pum!!! Na lona de novo. O meu lutador tinha sido nocauteado pela terceira vez.
    
    Assim foi a tarde toda, novas tentativas, novas frustrações.
 
    Fizemos alguns remendos na pandorga machucada, corrigimos a cauda, refizemos e tampamos alguns buracos. Mas nada. A pandorga não durava mais do que alguns segundos ao vento.
 
    O meu pai entre chateado e furioso, tentava me animar e incentivar em novas tentativas. Mas a cada queda, o tom de voz ficava cada vez mais nervoso e inseguro.
 
    Eu, desiludido, não sabia como reagir. Reclamar pelo fato do meu pai não ter comprado uma pandorga pronta ou falar que tudo bem, o importante era ter ficado algumas horas junto com ele, montando a mal-agradecida?
 
   De longe, apareceu um moço que com certeza tinha visto nossas frustradas tentativas de erguer o meu brinquedo. Ele fez alguns comentários que não entendi mas percebi que compreendia mais do assunto do que o meu pai. Começou a mexer na pandorga, cortou alguns excessos do corpo e da cauda, refez a aerodinâmica – se assim podemos disser – e sugeriu uma nova tentativa.
    
   O meu lutador de boxe, depois de vários KO, estava pronto para o último assalto. Era bater ou correr. Era derrubar o adversário ou perder a luta. 

   Lá fomos nós de novo. Levantei os braços, a pandorga estava pronta. O moço desconhecido puxou com firmeza o cordel e a pandorga levantou voo. Desta vez, durou uns 10 segundos antes de cair. Beijou a lona. Estatelou-se e quebrou-se em alguns pedaços. O juiz parou a luta, mandou o adversário pro canto dele e começou a contagem. 1, 2, 3...4, 5, 6.. 9, 10! O meu lutador não se levantou. A pandorga já era. 
 
   O moço apertou a mão do meu pai e meio que se justificando, explicou que a pandorga não tinha jeito. Era pesada demais ou algo assim (como se já não soubéssemos). O meu pai assentiu com a cabeça e agradeceu.
 
   Virou-se pra mim e pediu desculpas com o olhar. Eu não sabia o que dizer. O meu lutador continuava no chão. O meu pai – o meu herói, o meu ser indestrutível e perfeito, o meu modelo de conduta e sabedoria, tinha fracassado. E pela primeira vez, vi o meu pai como um perdedor, um ser humano de carne e osso que fez a escolha errada, tentando economizar em ninharias, dando-se mal. 
 
   Fui buscar a pandorga ou o que sobrou dela. Talvez pudesse construir uma nova com os restos. Uma pequena, leve e solta. Afinal, pra que gastar numa nova se poderíamos tê-la de volta? 
 








Publicado originalmente em Agosto de 2010.
Republicada em 10/08/2020.
E revisitada novamente.
Doença, dor e desespero. 
Uma singela homenagem no Dia dos Pais.

26 de julio de 2023

Don't Cry For Me Argentina - #RIPSineadOConnor

Muito antes do famigerado empoderamento cor de rosa - houve uma Sinéad. E para quem nunca ouviu um disco dela ou leu sobre a sua atribulada existência - recomendo. Com certeza, ela nunca brincou com uma Barbie e muito menos com um Ken, pois a vida não é uma brincadeira de criança.


 


15 de julio de 2023

Mission: Impossible – Dead Reckoning Part One

 

Quando assisti ao novo filme de Tom Cruise e vi a cena da perseguição do Fiat Cinquecento, pelas escadarias de Roma, veio à minha memória as cenas da perseguição de três Mini Coopers no filme Um Golpe à Italiana (1969). É claro que em termos de efeitos especiais não há comparação. Agora tudo é muito mais tecnológico e deslumbrante. 

Mas voltando ao filme em si. Tom Cruise deveria de ser agraciado com no mínimo um Oscar pelo conjunto da obra. É o único ator da atualidade que pode ser considerado de fato um Blockbuster, pois tem dois filmes (em 2022/23) quase perfeitos. Foi protagonista e produtor. de Top Gun no ano passado e agora temos a nova versão da franquia de Mission:Impossible, onde também atua como protagonista e produtor.

É claro que teremos mais filmes bem sucedidos em 2023, tais como, Barbie e Oppenheimer, mas nada se compara  à força de um Superastro como Tom Cruise que enche a tela do cinema com tensão e carisma. E que sente em carne viva as emoções das cenas mais perigosas, substituindo e superando qualquer dublê (bem longe de um Harrison Ford que nem consegue andar direito no último Indiana Jones).

Mission:Impossible Dead Reckoning é um filme com F maiúsculo. E já me encontro na expectativa da segunda parte para saber como o nosso querido Mr. Hunt conseguirá derrotar a tenebrosa Entidade. Desta vez, não há nada de organizações mafiosas, militares rebeldes com acesso a ogivas nucleares ou vilões psicopatas que querem destruir as raças inferiores - nada disso. 

A Entidade é um vilão (ou vilã) moderno, tão moderno que é feito de pura IA. Uma IA que se retroalimenta e ameaça o poder e hegemonia das potências mundiais.



Elton John - Goodbye Yellow Brick Road (30 May 2023) LAST SHOW EVER

4 de julio de 2023

VW 70 anos | Gerações | Elis revirando-se no túmulo

Um fusca velho, azul e desbotado tornou-se um retrato de liberdade, felicidade e contestação. Mal sabem os criadores do comercial de que a  música do Belchior é sobre conservadorismo e desalento. Sobre nostalgia e derrotismo. A Elis deve estar se revirando no túmulo.

28 de junio de 2023

A TRAVÉS DE LA MIRA / Через прицел

    

De tão inocente e ingênuo até parece ter sido feito na década de 60. Uma excelente oportunidade para fugir ao padrão Globo/Hollywood e assistir no YouTube uma produção que não será vista na Netflix e muito menos na Prime Vídeo. E também de conhecer o outro lado da história pois fomos formados na versão apenas norte-americana. da Segunda Guerra Mundial que na verdade foi ganha graças aos milhões de russos que enfrentaram os nazistas no Front Oriental (e eram tropas nazistas da elite, bem treinadas e com o melhor armamento). 

Cabe lembrar que já se passaram 90 anos e tudo indica que o filme/seriado em tela foi feito em homenagem a esse fato histórico. Ingênuo e inocente sim, mas com bem filmadas e construídas cenas de ação que relatam o dia a dia das franco-atiradoras que tiveram um papel marcante na vitória dos exércitos russos. E reza a lenda que apenas uma franco-atiradora matou mais de 500 soldados alemães.


                    


22 de junio de 2023

An Officer and a Spy / J'accuse / Militares e o golpe

 

Em tempos de militares golpistas, o filme J'accuse é mais do que relevante. Como não lembrar das trapalhadas do Exército Brasileiro quando vemos um filme onde coronéis e generais são pegos envolvidos numa tramoia para culpar um inocente de espionagem.

O mérito de Polansky é esse. Trazer à tona, de forma delicada mas pungente, tudo aquilo que houve de errado no processo de expulsão de Dreyfus.

Tudo para defender a suposta honra do Exército, da República, do País. O "espitu du corps" justifica tudo. Ninguém pode ser culpado porque caso contrário, todos seríamos culpados.

O planejamento do golpe tupiniquim representa muito bem tudo isso. Em nome de valores ultrapassados e fascistas, tudo vale para impor um governo de extrema-direita. Azar da população que eles dizem defender. Os golpistas são seres superiores que estão isentos de culpa e sabem o que é melhor para a maioria. Mesmo que depois se prove com fatos concretos que tudo não passa de uma forma vil de acobertar o desmando, a corrupção, a ineficiência e mediocridade.

Tanto o Exército Brasileiro como o Francês de 120 atrás - são iguais nesse afã de defender os seus interesses contra tudo e contra todos.

E como já escrevi anteriormente, os judios de ontem são os petistas de hoje, os comunistas, os socialistas, o MST, etc. Tudo serve para amedrontar as massas e justificar alguém supostamente forte,  incorruptível, um Messias no poder.