Liberdade para opinar, falar besteira e reclamar da vida (antigo ProviSório - como tudo que nos rodeia).
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Aleluia, Aleluia!!!
Cartas de Amor II
CARTAS DE AMOR II
Acordo confusa. Não sei exatamente o quê que aconteceu.
Sinto dor em todo o corpo e um galo enorme na minha testa. Levanto e vou até o banheiro. Rosto inchado, olhos de ressaca e lágrimas secas.
Aos poucos vou lembrando daquilo que aconteceu. Ele esteve aqui atrás das malditas cartas. Eu falei que não. Ele começou a me agredir, a falar mentiras. Disse que não gostava de mim e de que nunca gostou. Tudo mentira!
Ele gostava sim, as palavras podem mentir, mas aquilo que escreveu, foi sincero sim.
Como um turbilhão, começo a lembrar de cenas passadas. O primeiro dia. Quando ele entrou como estagiário no meu departamento, foi tratado por mim com indiferença, como um estagiário qualquer. Depois, quando ganhou confiança, me trazia um café, oferecia um chocolate, um biscoito recheado. Ninguém no departamento desconfiaria de nada. Afinal, eu tinha na época 35 e ele no máximo 20.
Um ano se passou e comecei a almoçar de vez em quando com ele. Era um papo divertido, descontraído e descompromissado. Não vou negar que aquela energia toda me fazia bem. Recordar dos meus 20 anos era muito bom. E eu sei que não serve como desculpa, mas a minha vida não era das mais intensas. Trabalhar o dia todo e chegar em casa, tendo como único incentivo assistir a novela das oito, era por demais deprimente. O meu marido trabalha à noite num Pronto Socorro e o nosso contato era esporádico e apenas nos fins de semana ou nas folgas.
Bom, aqui estou eu, tentando justificar o acontecido. Como se eu tivesse culpa. E na realidade eu fui uma vitima. Vitima das mentiras e trapaças de um adolescente. No início foram pequenos bilhetes, depois cartões da UNICEF ilustrados e por último, longas cartas, declarando a paixão proibida.
Ele levou tudo. Foi embora e me deixou jogada no sofá, desmaiada e com muita, muita raiva.
Decido sair. Tomar um pouco de ar fresco. Deve ser umas 8 horas. Vou ligar no serviço e falar que estou doente. Vou sair rápido antes que o meu marido chegue do plantão. Lavo o rosto, tiro as manchas, dou umas batidinhas para melhorar as rugas e as olheiras e penteio os cabelos horríveis. Para piorar estou menstruada e preciso trocar o modess e a calcinha. Saio correndo. O dia está lindo com um pálido sol saindo no horizonte. Na minha mente, ouço uma música de Barry Manilow e parece que estou no meu baile de debutante.
Começo a ficar deprimida mas digo basta e afugento os pensamentos negativos. Vou trabalhar sim! Trabalho num grande Hospital. Cheio de médicos e enfermeiras. Mas a minha função é burocrática. Chefio o departamento de RH. Pego um táxi e peço para me deixar no serviço. Acendo um cigarro. Lembro que não tomei café ainda mas não importa. Preciso emagrecer, ficar bonita.
Saio discretamente. Vou até o café. Enxugo o rosto. Limpo o nariz. Arrumo o cabelo e o vestido e peço um café puro e forte. Enquanto o garçom me serve, pego um guardanapo de papel e começo a escrever:
Cartas de Amor
- Sim, as cartas onde declarava o meu amor inconseqüente.
- Não?
- Então, por favor, destrói todas elas. Coloca fogo em tudo! Joga-las no vaso sanitário! Não quero que elas venham a público quando me tornar famoso e adulado por todos!
- Você ri? Mas é verdade. São cartas bobas e ridículas. Poemas velhos escritos com frases mal-feitas e amadoras. Não quero que os meus leitores descubram que escrevia tão mal. Por favor, joga tudo fora! E prometo não te ligar mais. Não te procurar.
E agora José?
Devo ariscar e manter as cartas em poder dela?
Pego o meu casaco e saio sem saber o quê fazer direito. Ando, ando sem parar. Passo por ruas vazias, becos mal-cheirosos e praças abandonadas onde pombas se deliciam com o excremento de pobres bêbados. Vejo crianças fumando crack, prostitutas brigando com os seus clientes – homens e mulheres que se tornaram o lumpem, a escória.
Repentinamente, percebo que estou a caminho da casa dela. Do bairro que muitas vezes freqüentei escondido para não ser visto nem descoberto, pois além de ser um missivista medíocre, era um adúltero cafajeste.
È um prédio de apartamentos. Um conjunto modesto onde não há porteiros nem guaritas. Subo as escadas sem pressa (quantas vezes estive aqui antes, uma, duas, três vezes?).
Bato na porta e espero alguns minutos. Ela olha assustada pela janela entreaberta apenas por um relance, fechando-a violentamente. Bato novamente e ameaço fazer um escândalo. A porta se abre e entro no pequeno apartamento que me viu transar com ela nas noites que o marido tinha plantão. Começo a ter pensamentos sujos e fico excitado mas acabo me controlando. O motivo que me trouxe aqui é reaver as cartas e só.
- Vim levar as cartas.
- Você é ridículo. As cartas são minhas. Foram escritas pra mim, portanto me pertencem, ela disse.
- Como você é ingênua. Tudo aquilo que escrevi não passou de poemas requentados. Poemas que escrevi na adolescência para uma garota que não me queria – só mudei o nome e troquei algumas coisas.
- Safado! É tudo mentira! Você jurou que me amava! Que teus sentimentos eram sinceros!
- Os sentimentos talvez, as palavras é que eram falsas. Adaptadas à ocasião e às circunstâncias. Os escritores vivem fazendo isso!
- Bunda mole nojento!
“Flores, flores
Foi ou não foi escrito pra mim!!!??
- Você além de tola é burra! Esse poema é uma cópia descarada de uma música do IRA.
Sento do lado e acaricio seus cabelos. Ela chora ainda mais. O tempo passa e os soluços ficam mais fortes. Começo a massagear seus ombros para tentar acalma-la mas não adianta. Fico excitado de novo e de impulso, tento beijar-lhe a nuca. Ela reage de forma agressiva, pega um abridor de cartas daqueles bem pontudos e tenta enfia-lo na minha boca. Consigo desviar-me a tempo. Ela tropeça e e bate a cabeça numa mesa de centro. Fica estirada no chão com uma pequena mancha de sangue na testa.
Apavorado tento socorrê-la. Ela respira!!! Tá desmaiada apenas.
Aproveito para pegar as cartas que estavam em cima da escrivaninha. Conto-as uma a uma. São 13 cartas ou poemas, escritos em papel almaço, guardanapos de papel ou pequenos cartões da UNICEF.
Antes de sair, decido coloca-la no sofá. É o mínimo que posso fazer. Parece uma criança. Limpo a sua testa e vista daqui de perto, até parece bonita.
Arrumo a bagunça, desligo a TV, estico o tapete e apago a luz.
Ando de volta pelas ruas agora não tão vazias. Cruzo com uma carroça de ferro-velho puxada por um cavalo esquelético de olhar estranho. Parece rir de mim. Idiota!
As cores do céu ficam cada vez mais claras com o alvorecer. Começo a caminhar mais depressa. Um sentimento de medo de ser punido me invade e quanto mais cedo chegar a casa, melhor.
Atravesso uma ponte e paro por um momento para ver o nascer do sol. Mas surge do nada um corpo boiando no rio. Não consigo ver se é homem ou mulher. Está virado de costas meio encoberto de lama e sujeira. Pego as cartas enfiadas no bolso da calça e rasgo-as uma a uma com muito cuidado. Jogo os pedaços de papel por cima do defunto, esperando que sirvam de mortalha. E agora onde havia juras ridículas de amor, só há palavras desconexas e partidas ao meio (triste fim para os meus sentimentos). Aos poucos o corpo vira um ponto negro no horizonte e retomo o meu andar aliviado, livre.
Posso agora escrever o meu livro sem qualquer ameaça do passado. Irei me tornar um escritor famoso. Um best seller. Entro numa padaria que acabou de abrir. Peço um pão com manteiga frio e um copo de leite quente com adoçante. Enquanto o balconista me serve, pego um guardanapo de papel e começo a escrever:
Há tantas palavras dentro de mim
Que alma e pensamentos são desflorados dia a dia.
Há tantas palavras dentro de mim
Que os demônios tomaram conta do meu corpo.
Março, 2005