Lembro como se fosse Ontem
Lembro como se fosse ontem da
prateleira cheia de livros empoeirados. E entre milhares deles, da dupla que
chamou a minha atenção. Eram 2 volumes das Tragédias de Shakespeare publicadas
pela Editora Abril. Capa dura, cor verde escura. Mas apesar de conteúdo tão
denso, eram pequenos e discretos. Em outras palavras, muito apropriados para
aquilo que tinha em mente.
Nove anos antes, furtava frutas
e legumes de um pequeno entreposto do interior gaúcho. Nunca esquecerei o olhar
de censura misturada com raiva do menino – filho do dono do entreposto – que me
olhava desconfiado mas que não tinha coragem de me acusar de ladrão-safado.
Ninguém por perto na seção de
clássicos de um sebo popular no centro de São Paulo. Era só pegar e esconder.
Um velho casaco com um bolso interno absurdamente grande seria o receptor do
meu arriscado entretenimento. Feito!
Ninguém viu, ninguém percebeu. Agora só resta sair sem demonstrar nervosismo ou
qualquer indício de canalhice. Bastava cruzar a porta e misturar-se na
multidão. Ninguém soube, ninguém saberá, pelo menos até hoje.
Desci as escadas em direção ao
banheiro masculino. Estava frio, muito frio em Porto Alegre. Sem querer
esbarrei numa faca peixeira enorme, daquelas que os gaúchos usam para cortar
carne de churrasco e são acomodadas na cintura. Era toda bonita, nova e
enfeitada. Estava lá, esquecida. E ninguém mais no banheiro. Não duvidei e
guardei-a para mim. Minutos depois, ouvi passos descendo a escada. Era um rapaz
de bigode e bombacha, perguntando se tinha visto a faca dele. Eu, adolescente
corajoso, falei que não. O bagual não se deu por satisfeito e revirou novamente
as dependências do lugar. Nada encontrado, refez a pergunta. E eu, adolescente
imberbe, falei que estava com ela. Fiquei tremendo de medo e após ouvir
impropérios e ameaças, saí do banheiro. Na mesa do restaurante, a minha
namorada aguardava com um pedaço de picanha recém saído do espeto.
Encarei a multidão. O Sebo não notou o meu furto desqualificado.
Não foi a última vez que furtei livros,
pois a minha mania de querer levar vantagem em tudo continua. É arriscado e tenebroso mas culturalmente
enriquecedor.