15 de noviembre de 2011

Amor de Cego

É deveras fascinante pensar na possibilidade de um mundo totalmente cego. Obviamente que perderíamos muito. Seria um caos, um desastre (vide Ensaio sobre a Cegueira). Não teríamos mais como aproveitar na sua plenitude o pôr do sol, mas em compensação, não seríamos também testemunhas de tanta estupidez e miséria.
Não existiriam revistas masculinas com seios à mostra e padrões de beleza siliconados. Afinal como identificar e classificar o belo se não temos como apreciá-lo visualmente?
Não haveriam estrias, rugas (talvez tivessem outros nomes). Não haveria celulite, barriguinhas (seriam apenas irregularidades da pele). Eu, por exemplo, não teria mais porque me esconder do espelho quando nu (algo que faço há anos), aliás, não haveriam espelhos.
O cabelo da moda, o nariz que nove entre dez mulheres gostariam de ter, seriam apenas frases jocosas de um passado nebuloso e arcaico.
A indústria do entretenimento, da moda, da beleza - não fariam sentido no meio de pessoas que teriam como preocupação básica 
não esbarrar um no outro.
O tato, o olfato e a audição seriam extremamente valorizados. 
E a solidariedade seria algo intrínseco, algo vital. Paralelamente, a taxa de mortalidade seria algo absurda. Não haveriam médicos cirurgiões, não haveriam drogas miraculosas. Em compensação, não teríamos o pecado da luxuria, o olhar de desprezo, uma "secada" inocente 
ou a frase ficar de olho...
Tudo isso veio à tona quando encontrei um casal de cegos fazendo compras no mercadinho. Os dois aparentemente apaixonados sem ter qualquer contato visual. Reencontrei-os no metrô. E ele meio desajeitadamente pedia licença no meio da multidão. Tomava conta dela como se fosse um cão-guia, pois parece que ele não perdeu a visão por completo. E formavam um casal bonito, em se tratando do padrão de beleza do qual somos escravos (branco, ocidental e católico). 
Enfim, os vi de novo na rua aqui perto de casa. Com um menino de aproximadamente 8 a 9 anos a guiá-los. Talvez fosse filho deles. Talvez não fosse cego (ainda). Talvez fosse feliz por não ser cego (uma tolice). Talvez estivesse a sorrir por ter os pais que tem. Cegos sim, mas por apenas não enxergar. Cegos de verdade somos nós. Cegos de alma egoísta, cheia de dor e ressentimento. Mas a vida continua...