2 de marzo de 2007

Cartas de Amor

CARTAS DE AMOR

- Tá certo. Não irei te ligar mais. Apenas te peço pra devolver as benditas cartas.

- Sim, as cartas onde declarava o meu amor inconseqüente.

- Não?

- Então, por favor, destrói todas elas. Coloca fogo em tudo! Joga-las no vaso sanitário! Não quero que elas venham a público quando me tornar famoso e adulado por todos!

- Você ri? Mas é verdade. São cartas bobas e ridículas. Poemas velhos escritos com frases mal-feitas e amadoras. Não quero que os meus leitores descubram que escrevia tão mal. Por favor, joga tudo fora! E prometo não te ligar mais. Não te procurar.

Desligo o telefone sem ter qualquer garantia de ter o meu passado de volta.

E agora José?

Devo ariscar e manter as cartas em poder dela?

Pego o meu casaco e saio sem saber o quê fazer direito. Ando, ando sem parar. Passo por ruas vazias, becos mal-cheirosos e praças abandonadas onde pombas se deliciam com o excremento de pobres bêbados. Vejo crianças fumando crack, prostitutas brigando com os seus clientes – homens e mulheres que se tornaram o lumpem, a escória.

Repentinamente, percebo que estou a caminho da casa dela. Do bairro que muitas vezes freqüentei escondido para não ser visto nem descoberto, pois além de ser um missivista medíocre, era um adúltero cafajeste.

È um prédio de apartamentos. Um conjunto modesto onde não há porteiros nem guaritas. Subo as escadas sem pressa (quantas vezes estive aqui antes, uma, duas, três vezes?).

Bato na porta e espero alguns minutos. Ela olha assustada pela janela entreaberta apenas por um relance, fechando-a violentamente. Bato novamente e ameaço fazer um escândalo. A porta se abre e entro no pequeno apartamento que me viu transar com ela nas noites que o marido tinha plantão. Começo a ter pensamentos sujos e fico excitado mas acabo me controlando. O motivo que me trouxe aqui é reaver as cartas e só.

- Vim levar as cartas.

- Você é ridículo. As cartas são minhas. Foram escritas pra mim, portanto me pertencem, ela disse.

- Como você é ingênua. Tudo aquilo que escrevi não passou de poemas requentados. Poemas que escrevi na adolescência para uma garota que não me queria – só mudei o nome e troquei algumas coisas.

- Safado! É tudo mentira! Você jurou que me amava! Que teus sentimentos eram sinceros!

- Os sentimentos talvez, as palavras é que eram falsas. Adaptadas à ocasião e às circunstâncias. Os escritores vivem fazendo isso!

- Bunda mole nojento!

Olha aqui, o cartão que você escreveu pro meu aniversário. Tá escrito:

“Flores, flores em você. No teu aniversário, mais flores, flores em você!”

Foi ou não foi escrito pra mim!!!??

- Você além de tola é burra! Esse poema é uma cópia descarada de uma música do IRA.

Pra quê fui falar isso. Ela começa a chorar. Nunca a vi assim. Fico com dó, com pena.

Sento do lado e acaricio seus cabelos. Ela chora ainda mais. O tempo passa e os soluços ficam mais fortes. Começo a massagear seus ombros para tentar acalma-la mas não adianta. Fico excitado de novo e de impulso, tento beijar-lhe a nuca. Ela reage de forma agressiva, pega um abridor de cartas daqueles bem pontudos e tenta enfia-lo na minha boca. Consigo desviar-me a tempo. Ela tropeça e e bate a cabeça numa mesa de centro. Fica estirada no chão com uma pequena mancha de sangue na testa.

Apavorado tento socorrê-la. Ela respira!!! Tá desmaiada apenas.

Aproveito para pegar as cartas que estavam em cima da escrivaninha. Conto-as uma a uma. São 13 cartas ou poemas, escritos em papel almaço, guardanapos de papel ou pequenos cartões da UNICEF.

Antes de sair, decido coloca-la no sofá. É o mínimo que posso fazer. Parece uma criança. Limpo a sua testa e vista daqui de perto, até parece bonita.

Arrumo a bagunça, desligo a TV, estico o tapete e apago a luz.

Ando de volta pelas ruas agora não tão vazias. Cruzo com uma carroça de ferro-velho puxada por um cavalo esquelético de olhar estranho. Parece rir de mim. Idiota!

As cores do céu ficam cada vez mais claras com o alvorecer. Começo a caminhar mais depressa. Um sentimento de medo de ser punido me invade e quanto mais cedo chegar a casa, melhor.

Atravesso uma ponte e paro por um momento para ver o nascer do sol. Mas surge do nada um corpo boiando no rio. Não consigo ver se é homem ou mulher. Está virado de costas meio encoberto de lama e sujeira. Pego as cartas enfiadas no bolso da calça e rasgo-as uma a uma com muito cuidado. Jogo os pedaços de papel por cima do defunto, esperando que sirvam de mortalha. E agora onde havia juras ridículas de amor, só há palavras desconexas e partidas ao meio (triste fim para os meus sentimentos). Aos poucos o corpo vira um ponto negro no horizonte e retomo o meu andar aliviado, livre.

Posso agora escrever o meu livro sem qualquer ameaça do passado. Irei me tornar um escritor famoso. Um best seller. Entro numa padaria que acabou de abrir. Peço um pão com manteiga frio e um copo de leite quente com adoçante. Enquanto o balconista me serve, pego um guardanapo de papel e começo a escrever:

Há tantas palavras dentro de mim

Que alma e pensamentos são desflorados dia a dia.

Há tantas palavras dentro de mim

Que os demônios tomaram conta do meu corpo.

Março, 2005