18 de octubre de 2010

Vale a pena ler de novo: Rose Muraro






Zero hora, Porto alegre, 24 de setembro de 2006.

"Sempre achei o mensalão uma bobagem''
Entrevista com Rose Marie Muraro.
> Reconhecida no Brasil e no Exterior como autora de livros
> sobre a condição da mulher, Rose Marie Muraro ganhou
> prestígio como feminista a partir dos anos 70. Formada
> em economia, circula pela sociologia, antropologia e
> psicologia para entender o feminino e seu ambiente de
> opressão e pobreza. Nesta entrevista por telefone, ela
> defendeu uma tese que admite ser capaz de provocar
> reações indignadas:
> ZH: - Ser moral dentro de um sistema imoral é legitimar a
> imoralidade.
> É dita, repetida, soletrada para defender que, apesar
> das denúncias de corrupção, o governo Lula deve ser
> anistiado por ter socorrido os pobres. A escritora, 75 anos,
> entende que setores que cobram moralidade de Lula, do
> governo e do PT sempre se comportaram imoralmente. A seguir,
> a entrevista que concedeu por telefone:

> Zero Hora - Os intelectuais identificados como de esquerda
> voltaram a falar depois da crise de corrupção?

> Rose Marie Muraro - Eu falei o tempo todo. Nunca estive em
> silêncio. Outros estiveram, porque houve um desânimo,
> um pouco de decepção com Lula. Mas vou votar nele de
> novo.
> Minha decepção é com a parte econômica. Quero ver o
> que ele vai fazer no segundo mandato. Estou votando meio de
> nariz fechado. Mas no Alckmin (Geraldo Alckmin, candidato
> do PSDB) não voto porque é da extrema direita.

> ZH - Sua decepção é só com a área econômica?

> Rose Marie - Eu estava esperançada. Achei que Lula
> sairia do modelo > neoliberal, e ele não saiu. Mas reconheço
> que o Bolsa-Família incrementou a > economia do Nordeste, que
> cresceu 10%. Aprendi com Dom Hélder Câmara > (arcebispo
> de Olinda e Recife, já falecido) que, ao mesmo tempo em que
> se dá comida, é preciso se fazer uma reforma estrutural.
> Mas o pobre diz: Lula faz > por mim. Os porteiros da minha rua
> dizem: pelo menos hoje a gente come. Um > deles me contou:
> pela primeira vez consegui juntar dinheiro para comprar uma
> passagem e retornei à minha cidade no Nordeste, e ela
> estava toda iluminada. >
> ZH - Por isso, segundo as pesquisas, os pobres votam em
> Lula?

> Rose Marie - O pobre sempre foi expropriado desde o
> nascimento. Lula sabe disso porque fugiu de Garanhuns
> para não morrer de fome. Uma pesquisa que realizei
> mostra que, desde que nasce, uma criança filha de camponeses sabe
> que vai chorar de fome e que seus desejos não serão
> satisfeitos, que sua fome não será saciada. Que ela
> sempre espera pela mãe, que já sofria como mulher a
> opressão do marido, dos pais. Essa criança esperava, na
passividade, pela vontade de Deus, do céu, uma
> salvação. Se ficasse boazinha, como pobre, iria para o céu. Aí tem
> também a opressão do patrão, do machismo, a
> dominação, a religiosidade popular. >
> ZH - O pobre não vincula Lula ao mensalão e agora ao
> caso do dossiê contra Serra?

> Rose Marie - O pobre já vinha sendo roubadíssimo,
> expropriado. Isso de mensalão e de sanguessuga é da
> lógica da classe média, não chega ao pobre da forma
> como os entendemos. A corrupção é uma disfunção do sistema
> econômico. Temos uma dupla moral. Os pobres serão sempre
> roubados pelos dominantes, porque os pobres devem ser
> honestos, e eles, não. Um banqueiro me disse que é
> assim mesmo, que a corrupção e a fraude são das leis do
> mercado. A classe rica ri de você. O caso do dossiê é
> revelador. Nada se investiga sobre o envolvimento de Serra com as
> sanguessugas, mas tudo se investiga sobre o PT. A mídia
> está com todo o foco sobre o PT.
> ZH - Todos, invariavelmente, agem então de forma
> antiética?

> Rose Marie - Eu digo que ser moral dentro de um sistema
> imoral é legitimar a imoralidade. O pobre sempre ouviu
> que deveria ser honesto, mas foi expropriado. Hoje ele
> pensa: vou votar em alguém que faz algo por mim, que me
> dá o que comer. É ético o que o povo está fazendo,
> ele está defendendo a sua vida. É a lógica da vingança de
> quem sempre foi expropriado. Seja quem for, se der comida aos
> pobres, terá meu voto. São Tomás de Aquino, na Suma Teológica,
já dizia que, se você está com fome, você tem o
direito de roubar. Nenhum presidente antes havia
favorecido tanto os pobres, a não ser Getúlio Vargas.
> Mas depois veio Delfim (Delfim Netto, ministro da Fazenda >
> durante a ditadura) e expropriou a comida dos pobres. Delfim
> era um ético?
> ZH - Isso justifica o mensalão e a corrupção?

> Rose Marie - Essa história de mensalão foi criada pelo
> PFL. O próprio Roberto Jefferson (ex-deputado, do PTB,
> que denunciou o mensalão) disse que o PT não tinha se
> locupletado. Os outros governos roubaram indistintamente.
> Juscelino (Juscelino Kubitschek) fez Brasília com o
> dinheiro da Previdência. O mensalão é pouco perto dos
bilhões das privatizações do governo FH, o governo mais corrupto.
Mas Lula é considerado um semi-estadista, e FH é um >
> grande estadista. Sempre achei o mensalão uma coisa ridícula,
> uma bobagem. > Converso com pessoas esclarecidas que se deram
> conta de que tudo foi uma > armação.
> ZH - O governo não tinha como agir de outra forma, sem o
> mensalão? >

> Rose Marie - Tinha. Eu iria para a TV e diria: tenho tais
> leis para votar, boas para a população, e o Congresso
> não quer. Mas como governar se a Câmara tem os partidos dos
> ruralistas, das empreiteiras, da indústria farmacêutica,
dos bancos, das indústrias? O que Lula deveria ter feito
> era trocar a > política econômica que beneficia essa elite.
> Mas ele acendeu uma vela a Deus e outra ao diabo.
> ZH - Pelas suas conclusões, Lula teria sido vítima de
> uma campanha moralista?

> Rose Marie - Todo moralismo é farisaísmo. Está em
> São Mateus. Os fariseus de hoje são a classe dominante.
> Falam de moral num sistema que sempre foi imoral. Isso é
> farisaísmo. E não sou comunista, porque o comunismo tem
> a mesma lógica. A noção de ética não pode ser
> aplicada à economia se não vier acompanhada de outros valores.
> Essa moral foi feita para manter as pessoas pobres. Eu não
> sou farisaica. Enfrentei a ditadura e luto concretamente >
> contra a injustiça. >
> > ( moises.mendes@zerohora.com.br )